Língua, linguagem e variação linguística - parte 2 (Aula 5)

 'O YouTube influencia o jeito de falar da minha filha'

Vitor Tavares

Da BBC News Brasil em São Paulo

13 abril 2021


Alguns meses após o início da pandemia e das medidas de isolamento social, a defensora pública Odyle Serejo, de Natal (RN), percebeu algo de diferente no jeito de falar da sua filha mais velha.

Anita, de 6 anos, passou a usar expressões que destoavam do vocabulário usado pela família e pela população do Rio Grande do Norte em geral. "Ela começou a falar coisas como 'Ah, satanás' ou 'supimpa', que não falamos em casa, e até a fazer um chiado em algum momento", exemplifica a mãe. Odyle credita parte dessa mudança ao YouTube, cada vez mais presente no dia a dia de Anita no período de distanciamento ocasionado pela covid-19.

Sem ir à escola e sem encontrar os amigos, a menina passou a se distrair consumindo principalmente vídeos de jovens youtubers jogando (e narrando) games populares entre as crianças. A maioria dos que ela acompanha é de São Paulo.

"Na pandemia, houve um contato maior com esse conteúdo e acho que influenciou. Essa geração tem características próprias na fala relacionadas ao mundo online, até na forma de se comunicar quando vão gravar um vídeo com o celular", diz a mãe de Anita.

Essa percepção não é restrita à família potiguar. Uma busca nas redes sociais leva a posts de pais relatando um suposto "sotaque do YouTube" em seus filhos.

"Meu filho de 5 anos passou a falar como alguém do interior de São Paulo. Só pode ter aprendido no YouTube. Foi muito engraçado quando percebi", relata a arquiteta Elisa*, do Rio de Janeiro, sobre o comportamento do filho Bruno*.

Mas será que o intenso consumo de vídeos nas redes sociais é capaz, sozinho, de mudar o jeito de uma criança falar? A resposta é mais complexa que um "sim" ou "não".

 

Qual a influência do YouTube?

A primeira coisa que precisamos ter em mente é que o "sotaque" de uma pessoa vai bem além do uso de novas expressões ou da forma como ela constrói uma frase.

O sotaque tem a ver com a forma que pronunciamos as palavras — como emitimos o som, onde posicionamos a língua — na hora de falar. O fonoaudiólogo e linguista Leonardo Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa), explica que o uso de novas palavras e gírias ou a maneira de formular frases exigem um "nível de atenção menos refinado" — ou seja, identificamos essas diferenças regionais rapidamente quando ouvimos e somos capazes de reproduzi-las no nosso próprio modo de falar.

Já o sotaque contempla propriedades acústicas mais refinadas, nuances muito discretas que às vezes nem percebemos — e, para "imitarmos" naturalmente, seria necessário certo nível de interação com o falante dessa variante.

Estudos feitos nos EUA que compararam a percepção e aquisição de linguagem mostram diferenças significativas quando crianças são expostas a telas ou quando elas interagem presencialmente com o interlocutor. "Ou seja, uma mera exposição a um conteúdo em vídeo não seria capaz de modificar o sotaque de uma criança. A pronúncia necessita da interatividade", explica Lopes.

"A exposição a vídeos com pessoas de outras regiões pode afetar a questão dialetal, o que inclui o vocabulário, expressões idiomáticas, o modo de formular uma frase".Isso quer dizer que o intenso consumo de vídeos pode fazer com que a expressão "oxe" — popular em vários Estados nordestinos — faça cada vez mais parte do vocabulário de pessoas do Sudeste. Mas não seria capaz de fazer com que um paulista fale um "ti" ou um "di" bem marcado, característico na pronúncia de um paraibano, por exemplo.



Essa influência específica no vocabulário é sentida na casa de Elisa, casada com um paulistano-catarinense e moradora do Rio de Janeiro. O filho Bruno, de 5 anos, já passou um período usando expressões nordestinas, mas hoje está indo mais pro lado das paulistas. "Com a pandemia, ele ficou muito em casa no tablet, vendo conteúdo de youtubers como Gabriel Dearo [de Ribeirão Preto, SP]. Antes ele via mais gamers do Nordeste. Então a gente vai percebendo essa mudança de acordo com o que ele assiste", diz.

O sotaque, ressalta Lopes, é formado até por volta dos 7 anos de idade. Para ocorrer uma mudança depois desse tempo, é necessário um período longo de exposição a outras variantes linguísticas ou um contexto social específico.

Por exemplo, as pessoas podem mudar a forma de falar, mesmo involuntariamente, para se incluir num determinado grupo social (quando se mudam para algum lugar) ou para se adequar a uma situação de fala (se é uma conversa de amigos, uma palestra ou uma gravação do Instagram).

Na casa de Odyle, a família percebeu que Anita fala de um jeito diferente se está gravando um vídeo — e que a garota também vive "fases" de falar uma ou outra expressão. "Depois do relaxamento de algumas medidas de isolamento, percebemos que voltou mais ao 'normal'".

 

Aprendendo com Youtubers

O pequeno Theo, de 8 anos, é um finlandês com raízes brasileiras. A mãe, a maranhense Eliana Nascimento, sempre fez questão de falar em português com o filho e de colocá-lo em contato com a família no Brasil. Mas, apesar de ter virado fluente no idioma mesmo morando na fria Turku, Theo passa longe de falar como a mãe. O garoto desenvolveu uma forma de falar muito próxima de Estados como São Paulo — o que a mãe acredita ter a ver com o YouTube.

"Quando era novinho, já percebia que ele tentava imitar personagens da Galinha Pintadinha. Ele foi ficando mais velho e isso foi mudando para outros youtubers brasileiros de games a que ele começou a assistir". Aos 6 anos, quando começou a jogar Minecraft, Theo se aproximou mais ainda do conteúdo em português.

"Ele usa expressões que eu nunca usei nem ninguém da minha família, como 'deu ruim'. A entonação, o ritmo, eu sinto que ele imita os youtubers." Segundo Eliana, amigas que moram no Brasil também têm essa percepção, mesmo com os filhos criados no Maranhão.

Para Abdelhak Razky, com doutorado em linguística pela Université de Toulouse Le Mirail e membro do projeto Atlas Linguístico do Brasil, os pais muitas vezes esquecem que a língua não é algo fixo, estático — nem a nossa forma de falar.

"Há uma mudança em curso no Brasil e no mundo sobre a fala que circula entre adultos e crianças, então podemos imaginar que o vocabulário muda e pode perder alguns traços dialetais nas crianças por vários motivos. As redes sociais podem ser um dos fatores que aceleram essa mudança", diz. O mundo globalizado, com mais trocas entre pessoas de diferentes regiões, está levando o Brasil a ter um sotaque mais homogeneizado, na opinião de Leonardo Lopes, da SBFa.

Ao relembrar a infância, Eliana, hoje com 38 anos, reflete que também era exposta a produtos audiovisuais com sotaques que não eram o maranhense, mas que nunca falou parecido com os apresentadores. "Hoje há muita exposição ao YouTube. Na televisão, não eram usadas tantas gírias. Alguns apresentadores faziam aulas de dicção para perder sotaque. Na internet, tudo é livre", opina.

Lopes, que pesquisou no doutorado justamente a relação da audiência com as variantes linguísticas de apresentadores de telejornais, reflete que o mundo conectado tem aumentado a nossa tolerância com os diferentes dialetos. "Esse processo social, de contato linguístico, tem essa parte positiva: há valorização da diversidade linguística, e isso é importante para que as pessoas parem de sofrer preconceito por causa da sua fala".


*Nomes trocados a pedido da entrevistada

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-56697071


Atividade


1. Ao observarem o jeito de falar dos filhos, alguns pais perceberam algo “diferente”. O que havia de novidade no falar das crianças citadas no texto?


2. Segundo o texto, que acontecimento permitiu que as crianças tivessem mais contato com a internet? 


3. De que estado brasileiro Anita, do Rio Grande do Norte, recebe mais influência para sua fala?


4. Pela leitura realizada, o fato de uma criança ser exposta a telas de celular, de tablet, de computador, modificaria definitivamente seu sotaque? Justifique sua resposta.


5. “Bruno, de 5 anos, já passou um período usando expressões nordestinas, mas hoje está indo mais pro lado dos paulistas.”. A que se atribui essa mudança?


6. Para Abdelhak Razky, com doutorado em linguística pela Université de Toulouse Le Mirail e membro do projeto Atlas Linguístico do Brasil, os pais muitas vezes esquecem que a língua não é algo fixo, estático — nem a nossa forma de falar. Com base na parte destacada, o que isso significa?


7. Ao pesquisar sobre as variantes linguísticas de apresentadores de telejornais, Lopes concluiu que o mundo conectado tem aumentado a nossa tolerância com os diferentes dialetos. Que aspecto positivo pode ser extraído do contato com várias formas de falar?


8. Lançado oficialmente em 2017, Free Fire se tornou um vício entre crianças e adultos.

Em seu dia-a-dia, certamente você já presenciou cenas em que a forma de falar dos jogadores desse jogo eletrônico sofreu alguma mudança. 




a) Dê exemplos de situações de interação no jogo que levam a perceber sua influência no modo de falar de seus participantes. 


b) Pelo que você leu no texto acima, você considera que essa influência ocorre de forma temporária ou definitiva?


c) Você: (marque um x na/nas alternativa/s com as quais se identifique)


(       ) Ouviu comentários sobre seu sotaque ou de outros participantes no momento do jogo.

(       ) Fez comentários a respeito do sotaque de outros participantes, por ser “diferente do seu”.

(       ) Gostou da experiência de conhecer novos dialetos.

(   ) Achou difícil entender o significado de algumas expressões da fala de outras localidades.

(       ) Não conhece o jogo, mas já teve experiência de ouvir outros sotaques diferentes do seu.


9. De norte a sul, há uma porção de sotaques no Brasil.

Para aprofundar o assunto, assista ao vídeo Sotaques do Brasil, disponível no Youtube no canal da Revista Superinteressante. Ao finalizar, faça um resumo do que assistiu.


GABARITO:

1. As crianças passaram a usar em sua fala expressões que não faziam parte do vocabulário usado pela família e pela população do local onde moravam ou até mesmo fazerem chiados em alguns momentos quando se comunicavam.

 

2. A pandemia, que trouxe o período de distanciamento social, ocasionado pela covid-19, e levou as crianças a terem mais contato com o celular e principalmente com o Youtube.

 

3. De São Paulo, ao acompanhar vídeos de jovens youtubers jogando (e narrando) games populares entre as crianças.

 

4. Não. Para que haja uma mudança definitiva do sotaque seria necessário uma interatividade mais específica e mais intensa. Como o texto fala, “uma mera exposição a um conteúdo em vídeo não seria capaz de modificar o sotaque de uma criança.”.

 

5. As mudanças na fala de Bruno ocorrem de acordo com o que ele assiste em casa em seu tablet. Antes via mais gamers do Nordeste; atualmente vê mais vídeos de youtubers de Ribeirão Preto (SP).

 

6. Dizer que a língua não é algo fixo significa dizer que ela varia, que ela sofre mudanças e isso só revela que a fala de adultos e crianças sempre passará por transformações, ou seja o vocabulário passa por modificações ao longo do tempo e alguns traços linguísticos podem sumir e novos traços linguísticos podem ser incorporados à nossa fala.

 

7. Segundo o autor, quanto mais o mundo se torna conectado, mais favorece a valorização da diversidade linguística e isso é importante para que as pessoas parem de sofrer preconceito por causa da sua fala.

 

8. 

 

a) Quando, por exemplo, alguém do Nordeste, ao interagir com outros participantes de outros estados, reproduzem o chiado da fala deles ou quando um dos participantes muda a entonação da sua fala para fazer referência ao seu sotaque. 

 

b) Pelo que foi lido no texto, essa influência ocorre de forma temporária. Para haver modificações definitivas, seria necessário interagir de forma intensa e constante.

 

c) Resposta Pessoal. 

 

9. 

 O vídeo Sotaques do Brasil apresenta, de forma rápida, um quadro geral das várias formas de falar ao longo de todo o país, mostrando que há uma diversidade linguística e contribuindo para que entendamos que, independente de algumas expressões do Nordeste serem ditas de outra forma em outros estados brasileiros, ainda assim conseguimos nos comunicar. Portanto, não existe uma única forma de falar e uma não é superior à outra, pois cada forma de se expressar faz parte de uma cultura, revela a identidade de uma população, o que não dá o direito de discriminar ninguém pela fala que reproduz; pelo contrário, acima de tudo, devemos sempre respeitar, ter carinho e admiração, já que essas diferenças fazem de todos nós uma nação.



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